João de Fernandes Teixeira Não é incomum encontrarmos a afirmação de que a Filosofia da Mente contemporânea surgiu com a publicação do livro de Gilbert Ryle, The Concept of Mind, em 1949. Passadas seis décadas de existência oficial, está na hora de indagar quais foram os progressos alcançados nessa nova disciplina. Isso equivale a perguntar o que aconteceu com o problema mente- cérebro nos últimos 60 anos.
As tentativas de solução do problema mente-cérebro não parecem ter
sido bem-sucedidas e se mantiveram em uma oscilação histórica entre
materialismo e dualismo.
A Inteligência Artificial quis produzir máquinas pensantes; a
Neurociência quis fotografar a consciência. Produzir máquinas pensantes seria
uma forma de mostrar em que sentido o pensamento poderia surgir da matéria.
Fotografar a consciência seria afirmar que ela é um fenômeno cerebral, pois
teria correlatos neurais. Nenhum desses projetos parece se encaminhar para um
sucesso pleno, e o problema mente-cérebro parece se manter recalcitrante no
horizonte, tanto da Filosofia quanto da Ciência contemporâneas. Por quê?
A indagação acerca das relações entre mente e cérebro não é apenas
teórica, e sim um problema que está enraizado na nossa própria percepção do
mundo. O mental continua a nos intrigar por se apresentar como etéreo, diáfano
e indestrutível, como se a matéria que nos cerca não fosse também
indestrutível. Se não podemos destruir o mental, tampouco podemos destruir um
fragmento de matéria. Mas parece que isso contradiz nossa percepção habitual
do mundo físico. Nossa concepção cotidiana da mente ainda sugere a existência
dessa contradição paradoxal entre físico e mental, na qual continuamos
acreditando.
Julgamos que o físico é distinto do mental pelo fato de este nos fazer
ingressar numa espécie de ontologia do invisível, estabelecendo um corte na
nossa percepção do mundo. É essa ontologia do invisível que promove uma
aliança secreta entre o dualismo e a tese da imaterialidade da alma, tão cara
às religiões. O divino e o imaterial se equiparam na sua invisibilidade. Por
isso, a mente deve ser também imaterial e sobre isso se assenta a ideia de
imortalidade. A morte é uma experiência que não faz parte da vida e é por
isso que ela é inconcebível para nós.
Temos, também, a tendência de conceber o mental como sendo privado e
causalmente inócuo. Tudo se passaria como se fosse possível que ele ocorresse
fora do mundo. É assim que o mental se apresenta na Psicologia popular. O
paradoxo é que a consciência é vista como algo inútil, mas ao mesmo tempo nos
causa úlceras e outras doen ças psicossomáticas. O pensamento não poderia
mudar o mundo, pois ocorre apenas no interior do nosso crânio. Mas como pode
ele ocasionar o movimento muscular e as alterações no corpo? Essas teorias
ambíguas do poder causal do mental seriam apenas um exemplo de assimetrias
paradoxais das quais emerge o problema mente- -cérebro. A ideia de causação
mental estabelece uma fratura entre mente e corpo que não pode ser preenchida
nem pela Ciência nem pela Filosofia.
O problema mente-cérebro reaparece no século XXI também como expressão
de nosso mal-estar na cultura científica. Ele se torna particularmente
inquietante na medida em que constatamos que a descrição do mundo físico
tornou-se incompatível com nossa percepção cotidiana da matéria. Ou seja,
nossa imagem científica do mundo nos diz precisamente que não podemos mais
fazer nenhuma imagem dele. Será a mente uma entidade física invisível e
paradoxal como tantas outras da mecânica quântica?
Há ainda outra origem para o problema mente-cérebro que não podemos
mais ignorar. Hoje em dia, a cisão entre o físico e o mental nos é dada pela
ideia de virtual. Com o advento do virtual, ganhamos ferramentas para simular
a fugacidade da experiência subjetiva numa tela de computador. Falar de uma
ontologia do virtual é a forma pós-moderna de reescrever o problema
mente-cérebro. O virtual o torna ainda mais agudo ao revelar, por exemplo, a
possibilidade da existência de mentes descorporificadas, como é o caso dos
robôs que estão na Internet. Mas o que é o virtual? Devemos situá-lo na
esfera física ou na mental? Ou entre ambas?
O virtual nos insere no sonho lúcido de que nos fala La Berge e que
foi magnificamente retratado no filme Vanilla Sky, dirigido por Cameron
Crowe, em 2001. O sonho lúcido é aquele no qual somos conscientes de que
estamos sonhando. É isso que ocorre quando entramos na Internet. No filme, o
personagem alucina um mundo que coincide com o real, mas sabe que está apenas
alucinando. O virtual gera a ilusão de que ele é um mundo à parte, que não
depende de nós. Um mundo intermediário entre o físico e o mental. Mas essa é
talvez a maior peça ideológica que o mundo pós-moderno quer nos pregar. Não
existe o mundo do virtual, da mesma maneira que Sartre nos dizia que a
principal característica do mundo da imaginação é precisamente ele não se
constituir como um mundo.
A virtualização progressiva do mundo contribui para tornar o problema
mentecérebro ainda mais confuso no século XXI. As sociedades contemporâneas
ingressam cada vez mais num processo de "disneyficação". Nossas
vidas tendem a se tornar, cada vez mais, parte de grandes parques temáticos
semelhantes à Disneyworld. O virtual cada vez mais se sobrepõe ao real.
Passados 60 anos, a Filosofia da Mente no século XXI ainda não
encontrou soluções aceitáveis para o problema mente-cérebro. Os cientistas e
os filósofos da mente parecem cegos lavando um elefante. Quem lava a cauda
descreve o elefante de uma maneira diferente de quem lava a tromba. Mas
nenhum deles consegue imaginar como é o elefante, ou seja, como um animal que
tem ambas: cauda e tromba.
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João de Fernandes Teixeira é Ph.D. pela University of Essex (Inglaterra) e se pós-doutorou com Daniel Dennett nos Estados Unidos. É professor titular na Universidade Federal de São Carlos.www.filosofiadamente.org
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terça-feira, 12 de maio de 2015
Os filósofos da mente e os cegos lavando um elefante
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