terça-feira, 12 de maio de 2015

Os filósofos da mente e os cegos lavando um elefante


      
               João de Fernandes Teixeira

Não é incomum encontrarmos a afirmação de que a Filosofia da Mente contemporânea surgiu com a publicação do livro de Gilbert Ryle, The Concept of Mind, em 1949. Passadas seis décadas de existência oficial, está na hora de indagar quais foram os progressos alcançados nessa nova disciplina. Isso equivale a perguntar o que aconteceu com o problema mente- cérebro nos últimos 60 anos.
As tentativas de solução do problema mente-cérebro não parecem ter sido bem-sucedidas e se mantiveram em uma oscilação histórica entre materialismo e dualismo.
A Inteligência Artificial quis produzir máquinas pensantes; a Neurociência quis fotografar a consciência. Produzir máquinas pensantes seria uma forma de mostrar em que sentido o pensamento poderia surgir da matéria. Fotografar a consciência seria afirmar que ela é um fenômeno cerebral, pois teria correlatos neurais. Nenhum desses projetos parece se encaminhar para um sucesso pleno, e o problema mente-cérebro parece se manter recalcitrante no horizonte, tanto da Filosofia quanto da Ciência contemporâneas. Por quê?
A indagação acerca das relações entre mente e cérebro não é apenas teórica, e sim um problema que está enraizado na nossa própria percepção do mundo. O mental continua a nos intrigar por se apresentar como etéreo, diáfano e indestrutível, como se a matéria que nos cerca não fosse também indestrutível. Se não podemos destruir o mental, tampouco podemos destruir um fragmento de matéria. Mas parece que isso contradiz nossa percepção habitual do mundo físico. Nossa concepção cotidiana da mente ainda sugere a existência dessa contradição paradoxal entre físico e mental, na qual continuamos acreditando.


Julgamos que o físico é distinto do mental pelo fato de este nos fazer ingressar numa espécie de ontologia do invisível, estabelecendo um corte na nossa percepção do mundo. É essa ontologia do invisível que promove uma aliança secreta entre o dualismo e a tese da imaterialidade da alma, tão cara às religiões. O divino e o imaterial se equiparam na sua invisibilidade. Por isso, a mente deve ser também imaterial e sobre isso se assenta a ideia de imortalidade. A morte é uma experiência que não faz parte da vida e é por isso que ela é inconcebível para nós.
Temos, também, a tendência de conceber o mental como sendo privado e causalmente inócuo. Tudo se passaria como se fosse possível que ele ocorresse fora do mundo. É assim que o mental se apresenta na Psicologia popular. O paradoxo é que a consciência é vista como algo inútil, mas ao mesmo tempo nos causa úlceras e outras doen ças psicossomáticas. O pensamento não poderia mudar o mundo, pois ocorre apenas no interior do nosso crânio. Mas como pode ele ocasionar o movimento muscular e as alterações no corpo? Essas teorias ambíguas do poder causal do mental seriam apenas um exemplo de assimetrias paradoxais das quais emerge o problema mente- -cérebro. A ideia de causação mental estabelece uma fratura entre mente e corpo que não pode ser preenchida nem pela Ciência nem pela Filosofia.
O problema mente-cérebro reaparece no século XXI também como expressão de nosso mal-estar na cultura científica. Ele se torna particularmente inquietante na medida em que constatamos que a descrição do mundo físico tornou-se incompatível com nossa percepção cotidiana da matéria. Ou seja, nossa imagem científica do mundo nos diz precisamente que não podemos mais fazer nenhuma imagem dele. Será a mente uma entidade física invisível e paradoxal como tantas outras da mecânica quântica?
Há ainda outra origem para o problema mente-cérebro que não podemos mais ignorar. Hoje em dia, a cisão entre o físico e o mental nos é dada pela ideia de virtual. Com o advento do virtual, ganhamos ferramentas para simular a fugacidade da experiência subjetiva numa tela de computador. Falar de uma ontologia do virtual é a forma pós-moderna de reescrever o problema mente-cérebro. O virtual o torna ainda mais agudo ao revelar, por exemplo, a possibilidade da existência de mentes descorporificadas, como é o caso dos robôs que estão na Internet. Mas o que é o virtual? Devemos situá-lo na esfera física ou na mental? Ou entre ambas?
O virtual nos insere no sonho lúcido de que nos fala La Berge e que foi magnificamente retratado no filme Vanilla Sky, dirigido por Cameron Crowe, em 2001. O sonho lúcido é aquele no qual somos conscientes de que estamos sonhando. É isso que ocorre quando entramos na Internet. No filme, o personagem alucina um mundo que coincide com o real, mas sabe que está apenas alucinando. O virtual gera a ilusão de que ele é um mundo à parte, que não depende de nós. Um mundo intermediário entre o físico e o mental. Mas essa é talvez a maior peça ideológica que o mundo pós-moderno quer nos pregar. Não existe o mundo do virtual, da mesma maneira que Sartre nos dizia que a principal característica do mundo da imaginação é precisamente ele não se constituir como um mundo.
A virtualização progressiva do mundo contribui para tornar o problema mentecérebro ainda mais confuso no século XXI. As sociedades contemporâneas ingressam cada vez mais num processo de "disneyficação". Nossas vidas tendem a se tornar, cada vez mais, parte de grandes parques temáticos semelhantes à Disneyworld. O virtual cada vez mais se sobrepõe ao real.
Passados 60 anos, a Filosofia da Mente no século XXI ainda não encontrou soluções aceitáveis para o problema mente-cérebro. Os cientistas e os filósofos da mente parecem cegos lavando um elefante. Quem lava a cauda descreve o elefante de uma maneira diferente de quem lava a tromba. Mas nenhum deles consegue imaginar como é o elefante, ou seja, como um animal que tem ambas: cauda e tromba.
 João de Fernandes Teixeira é Ph.D. pela University of Essex (Inglaterra) e se pós-doutorou com Daniel Dennett nos Estados Unidos. É professor titular na Universidade Federal de São Carlos.www.filosofiadamente.org



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