sexta-feira, 22 de maio de 2015

António Damásio: 'A neurociência lida com questões da filosofia'


Enquanto explica a um leigo as principais teses de seu novo livro, “E o cérebro criou o homem” (Companhia das Letras, tradução de Laura Teixeira Motta), o neurocientista português António Damásio recorre alternadamente a estudos de ponta em sua área e à obra de alguns dos principais filósofos ocidentais, como Descartes e Spinoza. Mais que uma estratégia de popularização da ciência, a postura de Damásio pode ser entendida como uma tentativa de conectar os avanços nas pesquisas sobre consciência, memória e percepção a um tipo de reflexão sobre a natureza humana que costuma ser mais associado à filosofia, à psicologia e às artes.

Essa postura já estava presente no livro que tornou Damásio conhecido fora dos círculos acadêmicos, “O erro de Descartes”, de 1994, no qual defendia que a neurociência fornece argumentos que ultrapassam o dualismo entre corpo e mente proposto pelo filósofo. O livro novo incrementa a tese com descobertas recentes que indicam que o córtex, região mais complexa do cérebro, não é a única “base” da consciência, como se costuma crer — ela estaria ligada também ao tronco cerebral, responsável por funções corporais mais primitivas, como o ritmo cardíaco e a respiração. Essa concepção da consciência pode ser estendida à natureza como um todo, propõe Damásio: do nível humano ao de seres rudimentares que não têm memória nem autoconhecimento, mas têm noção do que se passa à sua volta.

Em entrevista ao GLOBO, Damásio relaciona essa ideia à obra de outro filósofo que já abordou em livro (“Em busca de Spinoza”, de 2003), cuja visão da consciência recusa o dualismo de Descartes. E justifica a mescla de pensamento científico e filosófico:

— A neurociência está empenhada em questões com as quais artistas e filósofos lidam há séculos. Aristóteles, Dante, Shakespeare e Spinoza pensaram nos problemas mais profundos da humanidade, e nós também — diz Damásio, por telefone, de seu escritório na University of Southern California, onde dá aulas de neurociência e dirige o Instituto Cérebro e Criatividade.

Em artigo publicado também nesta edição, a professora Maria Cristina Franco Ferraz analisa as intervenções da neurociência na seara das humanidades e a emergência de uma "cultura somática" que desloca a ênfase da psicologia para a biologia. Leia aqui.
Em “E o cérebro criou o homem”, você diz que nosso entendimento da consciência se beneficia de um “legado conceitual” da filosofia e da psicologia e de um “legado neural” da biologia e da neurociência. Até que ponto esses campos do conhecimento podem ser complementares? 

ANTÓNIO DAMÁSIO: Acredito que esses campos são complementares, mas há imensas barreiras entre eles. Tenho tentado ajudar a promover esse diálogo. Quando comecei a estudar questões relacionadas à emoção, ao sentimento e à tomada de decisões, ficou clara para mim a ligação entre a neurociência e os campos do conhecimento que sempre se dedicaram ao que há de mais básico na vida, os grandes dramas humanos de decidir o que é bom e o que é mau, buscar a felicidade, rejeitar a dor e a tristeza. Como sou neurologista por formação, estou interessado em saber como o cérebro se comporta nessas situações e também quero contribuir para o tratamento de doenças como o Alzheimer e a depressão. Mas o que me fascina é que a neurociência está empenhada em resolver questões com as quais artistas e filósofos lidam há séculos. Aristóteles, Dante, Shakespeare e Spinoza pensaram nos problemas mais profundos da humanidade, e nós também.


Mas onde esses campos podem entrar em atrito?
Sobretudo no que diz respeito aos métodos. Da perspectiva de artistas e filósofos, a objetividade científica pode parecer redutora. Mas no fundo não há tanta incompatibilidade. No Instituto Cérebro e Criatividade, que fundamos na Califórnia, temos visto que artistas e pensadores gostam de se aproximar dos cientistas — se não forem maltratados, claro (risos). Em nossos estudos sobre como o cérebro lida com a melodia e as estruturas musicais, por exemplo, temos a colaboração de muitos músicos, como Yo Yo Ma. Tenho esperança que essa dita barreira entre ciências e humanidades se resolva no futuro.


A filosofia está muito presente em seu trabalho. No novo livro, muitas proposições sobre a consciência estão ancoradas na obra de William James. E outros livros seus remetem a Descartes e Spinoza. Como as ideias de filósofos sobre a mente humana contribuíram para o desenvolvimento da neurociência?

Ao se aproximar dessas grandes questões de que falamos, a filosofia formulou inúmeras teorias. Nas últimas três décadas, com os avanços da neurociência, podemos verificar cientificamente algumas delas. Muitos pensadores da virada do século XIX para o XX, como William James e, em certo sentido, Freud, podem ser apontados como precursores da neurociência atual. A diferença é que hoje podemos testar hipóteses que há cem anos não eram verificáveis.


Com isso, pode haver o caminho inverso, com a neurociência influenciando a filosofia?

Sim, vejo jovens filósofos extremamente alerta para o que se passa no campo da neurociência. As gerações mais antigas muitas vezes pensam que a neurociência tenta roubar da filosofia seus temas tradicionais. Mas entre os mais jovens há uma grande abertura para as contribuições da neurociência, o que é vantajoso para ambos.


Um dos pontos centrais do novo livro é o estudo de como o cérebro constrói a mente e como torna essa mente consciente, uma questão central também na história da filosofia. Em que estágio de compreensão desses fenômenos a neurociência se encontra hoje?
Hoje é possível dizer com mais convicção que aquilo que chamamos de mente é o resultado de mapas neurais que construímos, alguns muito ligados ao corpo, outros mais ligados ao meio que nos circunda. Quanto ao modo exato como a consciência é construída, obtivemos uma série de progressos, mas ainda há questões em aberto. No livro descrevo como pesquisas recentes mostram que, ao contrário do que muitos acreditam, o córtex cerebral não é a única “base” da consciência. O nível mais alto tem muito a ver com o córtex, mas níveis mais simples têm a ver sobretudo com o tronco cerebral. E a identificação da base neural exata dos sentimentos, o problema neurocientífico que mais me interessa, ainda está em desenvolvimento. Acredito que nos próximos cinco ou dez anos teremos resultados notáveis sobre como o cérebro constrói o eu.


Com os avanços recentes, a neurociência corre o risco de cair no triunfalismo?
Se não chegarmos a entender tudo também não será um desastre, porque há tanta complexidade e beleza no ser humano que não faz mal se fica algum mistério, não é? (risos) O importante é que o progresso do conhecimento não cause uma perda de humanidade. Fico desapontado quando dizem que a neurociência reduz tudo ao cérebro e a circuitos nervosos. Reduzir a natureza humana a neurotransmissores, dopamina e serotonina é muito triste.


Mas esse reducionismo é comum hoje, não? Como você avalia a presença da neurociência na cultura popular atual?

O sucesso da neurociência faz com que muitos caiam em explicações simplistas. Tudo que tem relação com o cérebro é complexo, e por isso os neurocientistas devem se explicar mais, sempre. O reducionismo traz muitos riscos. Há quem acredite que podemos resolver a dor e a tristeza só tomando pílulas, o que é ridículo. Medicamentos não são a única solução. Estamos imersos em afetos, relações sociais, a justiça, a política, a economia... Não se pode isolar o cérebro disso tudo. Não é vantajoso neurologizar todos os problemas que temos.

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