sábado, 23 de maio de 2015

As neurociências: um texto de introdução

O cérebro na intersecção de ciência, medicina e tecnologia.

O cérebro, o órgão mais complexo do corpo, é o mais crucial para a compreensão do ser humano. É o objetivo de estudo de cientistas e médicos de diversas especialidades, desde a biologia molecular à psicologia cognitiva e experimental, assim como anatomia, fisiologia e farmacologia. A estrutura e funcionamento do cérebro é ainda o objeto de interesse de engenheiros e cientistas da computação que desenvolvem interfaces homem-máquina, próteses e ambientes de realidade virtual. Esta junção de interesses criou uma nova área, intrinsecamente multi- e interdisciplinar, chamada de Neurociência. No século XX, a neurociência emergiu como campo científico com origem em, mas distinto de, outras disciplinas, da mesma forma que artes, justiça, teologia e medicina emergiram como campos da sabedoria nas universidades medievais, que a física nasceu de uma convergência de geometria, filosofia metafísica, matemática aplicada e astronomia e a psicologia de escolas na filosofia epistemológica, medicina e fisiologia, entre outras fontes. A neurociência agregou o conhecimento, com raízes em diversas áreas, em volta de um objeto de estudo e se tornou uma disciplina madura.
A expansão das neurociências
Impulsionada por descobertas científicas e potenciais para o tratamento de doenças neurológicas comuns, a área de neurociência vivencia mundialmente um crescimento vertiginoso nos últimos 25 anos. A Society for Neuroscience, sociedade internacional na área, cresceu de 500 membros em 1969, quando foi fundada, até 40.000 membros em 2010. Evidenciamos uma alta produtividade em temáticas relacionadas com aplicações que envolvem células-tronco, implantes de neuro-estimuladores, desenvolvimento de interfaces tecnológicos e técnicas de imageamento cerebral. Nos EUA os anos 1990-1999 foram declarados como a Década do Cérebro em reconhecimento a esta nova área, o número de participantes no principal evento científico na área superou a marca de 30.000 e praticamente diariamente é possível encontrar nos jornais diários reportagens de divulgação de descobertas científicas ou tecnológicas a partir de estudos do campo da neurociência.
A neurociência do século XXI
O crescimento exponencial do conhecimento sobre o sistema nervoso ocorreu em função da disponibilidade de novas técnicas em todos os níveis. Por exemplo, descobriu-se a estrutura funcional do cérebro humano em ação graças à tomografia por emissão de pósitrons a partir dos anos 80, a organização modular com o sinal-BOLD da ressonância magnética funcional nos anos 90, a conectividade cortical por imageamento de tensor de difusão, ainda em desenvolvimento. Novas maneiras de abordar mecanismos bioquímicos e fisiológicos no sistema nervoso são fornecidas por estudos com camundongos transgênicos, a partir dos anos 90, pela expressão da proteína verde fluorescente e, ainda mais recentemente, a ativação ou inibição de neurônios pela modulação por luz de canais iônicos optogeneticamente modificados e imageamento ultra-rápido da dinâmica neuronal com tecnologia de laser. Se cada uma destas técnicas já é extremamente promissora, a combinação e integração com métodos existentes revolucionará o entendimento do elo entre biologia do sistema nervoso e o funcionamento da mente.
Junta-se à revolução biotecnológica a revolução digital. Processadores continuam seguindo a lei de Moore, com uma duplicação em densidade de transistores a cada dois anos, e o uso paralelo de recursos tem sido otimizado e amplificado. Desta forma, técnicas de análise, modelagem e simulação que antigamente não podiam ser implementadas por causa da demanda computacional agora estão dentro do alcance de pesquisadores. Modelos matemáticos refinados de funções corticais agora podem ser testados, e a comunidade de cientistas de computação retomou o interesse em entender como o cérebro funciona, fato ilustrado pela colocação da arquitetura do cérebro e da mente como item entre os “Grand Challenge 5” pela British Computer Society. Sem o crescimento exponencial do poder digital, a decodificação de padrões de ativação neural, essencial no desenvolvimento atual de próteses controladas pela volição, não teria sido possível. Se o neurocientista do século XX já não tinha um perfil tradicional, o neurocientista do século XXI precisa possuir uma base sólida em biologia, entre outras ciências, e em técnicas que exigem o domínio do computador como ferramenta de análise e de modelagem.
A neurociência e a sociedade

Como ocorreu em outras ciências, a evolução da neurociência é caracterizada pela busca inicial dos princípios fundamentais em estudos de ciência básica, seguida pelas perguntas de como o novo conhecimento pode servir a humanidade, e pelo caminho inverso simultâneo, em qual a sociedade coloca questões a serem acatadas por cientistas. A comunidade tem seguido o progresso no entendimento do cérebro de perto, curiosa em saber como funciona o que parece ser o órgão que nos define como humanos. O fascínio estimula a produção de ensaios, blogues e livros voltados para leigos, da mão de escritores como Isaac Asimov (ex. “O cérebro humano”), Oliver Sacks (ex. “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”), ou, no cenário nacional, Iván Izquierdo (ex. “Questões sobre memória”), Suzana Herculano-Houzel (ex. “O cérebro nosso de cada dia”, além de um quadro em um programa popular de infotenimento), e Roberto Lent com uma série de livros sobre neurociência para crianças.
Como em outras ciências, a sociedade procura o neurocientista para, em primeiro lugar, resolver problemas de pacientes, e em segundo lugar, melhorar a qualidade de vida da população em geral, ou seja, para aplicar o conhecimento que produz no contexto clínico e cotidiano. No primeiro quesito, a neurociência revelou mecanismos patogênicos em condições neurológicas prevalentes, como esclerose múltipla, o mal de Parkinson ou a demência de Alzheimer, o que leva à esperança de diagnose precoce e tratamento para retardar de forma significativa a progressão destas síndromes. Métodos desenvolvidos na neurociência elucidaram os desequilíbrios que causam doenças psiquiátricas, entre os maiores problemas de saúde pública a depressão, o abuso de drogas e a esquizofrenia. Segundo estatísticas da OMS, o Brasil está na pior situação possível, com no ano 2004, entre 192 países-membro, o segundo maior índice de anos perdidos à debilitação ou morte por depressão e a segunda pior posição para doenças neuropsiquiátricas em geral (DALY rates, Global Health Observatory). A neurociência é encarregada com a grande responsabilidade de fazer progressos significativos nesta área, junto com a psicoterapia, a psiquiatria e outras disciplinas tradicionais envolvidas no estudo da saúde mental; métodos recentes com modelos animais, estudos psicofarmacológicos e técnicas como tomografiapor emissão de fóton único com ligantes específicos têm levado a avanços encorajadores.

Mesmo nos casos em quais a ciência não dê as respostas que levam à cura de uma doença, a independência de um paciente pode ser melhorada drasticamente através do desenho cuidadoso do ambiente com qual ele interage. Adaptações deste tipo requerem um entendimento profundo de como o homem seleciona e processa informação na sua volta e como condições específicas afetam o quadro normal, baseado em estudos experimentais comportamentais. Esta questão é generaliza para a população como um todo. Na época da informação que estamos presenciando, o acesso a dados e a dispositivos eletrônicos ou de outra natureza que os fornecem certamente contribuiu de forma importante ao nosso bemestar. No entanto, a apresentação ineficiente de informação em interfaces não-intuitivas, em tabelas complexas, em displays sobrecarregados, é causa de erros e frustração para muitos. Há situações em quais a exposição confusa de dados pode levar a prejuízos importantes, como na leitura de uma bula e a interpretação das instruções de um médico. Com métodos da psicologia experimental em combinação com neuroimagem e outros registros, a neurociência cognitiva indica caminhos para evitar os chamados erros humanos, com pequenas ou grandes consequências.

Uma outra área onde a neurociência está começando a cumprir um papel importante é na educação. A aprendizagem seja talvez a área onde a neurociência funcional tenha conseguido o maior progresso nos últimos 30 anos. Neste contexto, a aprendizagem não necessariamente possui o mesmo significado como entendido como aprendizagem escolar. No entanto, a elucidação das bases biológicas da memória dá pistas valiosas sobre como facilitar a aprendizagem declarativa ou procedural, como direcionar a atenção, como fixar a aprendizagem. Desta forma, a neurociência é um guia para a elaboração de estratégias de ensino para cientistas educacionais.
Recentemente, a neurociência tem entrado como elemento na argumentação em foros de justiça criminal. No curso de alguns processos na cena mundial, ressonância magnética funcional foi defendida como uma alternativa moderna e mais confiável às antigas testes poligráficos para detecção de decepção. Têm sido registrados casos em quais a responsabilidade penal do réu foi questionada baseada em neuroimagem estrutural ou efeitos colaterais de remédios farmacológicos. Estas versões modernas do pleito de incidente de insanidade mental sempre são acompanhadas da discussão da validade destes argumentos como evidência no contexto da jurisprudência, e no nível da sociedade, da ponderação de determinantes neurológicos do comportamento e personalidade versus livre arbítrio em comportamento e personalidade.
A aplicação de descobertas e técnicas científicas a estas e outras áreas cruciais para a sociedade necessita de uma mente criativa e aberta, com acesso a uma base científica de várias disciplinas tradicionais, a uma forte preparação metodológica e uma gama de técnicas contemporâneas biológicas, comportamentais e computacionais. A necessidade de um profissional com este perfil, especializado e atualizado em neurociência, para providenciar assistência na solução de desafios concretos em laboratórios, hospitais, escolas, ou outras organizações públicas ou comerciais, é a razão pela proposta de um bacharelado em neurociência.
Histórico do ensino em neurociência

Nas últimas décadas, a importância e abrangência das possíveis aplicações do campo de neurociência gerou uma necessidade de profissionais com conhecimentos amplos em diversas disciplinas tradicionais e na realidade, profissionais no novo campo chamado neurociência. Os programas de pós-graduação em áreas como psicologia, engenharia, computação, biologia e medicina, estavam demandando alunos com perfil flexível, por exemplo, alunos versados na estrutura e função do sistema nervoso central, mas também capazes de implementar e testar seus modelos em computador. Pequenas empresas estavam interessadas em profissionais capazes de auxiliar seus engenheiros em desenhar e construir órgãos sensoriais artificiais e robôs eficientes. Jornais e revistas semanais estavam procurando profissionais capazes de transmitir informações científicas da área de forma clara e precisa. Esta forte demanda resultou na criação de mais de cem cursos de bacharelado em neurociência somente nos EUA, alguns deles nas instituições do mais alto prestígio, como a MIT, Johns Hopkins, University of California e Duke University, mas também em universidades menos conhecidas. Outros cursos de graduação estão em funcionamento na Europa, em universidades nas cidades de Essex, Rochester, Amsterdã e Lausanne, entre outras.
No Brasil, o único curso que atualmente vai ao encontro da proposta de um bacharelado na área das neurociências é o curso de Graduação em Ciências Biológicas, Bacharelado com ênfase em Neurociências, instituído em janeiro de 2010 pela Universidade Federal Fluminense (UFF). A grade curricular deste curso é mais especificamente orientada à biologia e neurobiologia do que às neurociências em geral. A ausência de opções tem suas origens na percepção do campo de neurociência na sua versão dos anos 70 e 80, uma área focada em pesquisa básica e dominada por estudos acadêmicos. Outro fator é a noção da falta de opção de ocupação de um bacharel em neurociência no Brasil. Com o desenvolvimento econômico do país e a ampliação da aplicabilidade da neurociência, é preciso desafiar esta pressuposição.
Tradicionalmente, o ensino de técnicas na área das neurociências em países emergentes é realizado em nível de bacharelado através de cursos breves e específicos direcionados a médicos, enfermeiros, paramédicos, psicólogos e outros profissionais. Este modo de ensino é limitado em uma área em qual a integração do conhecimento sobre várias disciplinas é tão crucial. Programas de mestrado e doutorado em neurociências no Brasil – e outros países emergentes – preparam em primeiro lugar para pesquisa acadêmica e não necessariamente atendem a um perfil mais voltado para tecnologia e aplicação. Com uma conjuntura favorável para investimentos por parte de instituições públicas e privadas, surge o interesse em empregar um bacharel com conhecimento e habilidades específicos também em um país emergente. Entre os países BRIC, um bacharelado na área já é oferecido na Sri Ramachandra University na Índia, sob o nome de BSc. in Neuroscience Technology na faculdade de Allied Health Sciences. A raridade do bacharelado em neurociência em outros países em desenvolvimento provavelmente deve-se à escassez de mestres e doutores na área para o ensino das disciplinas dentro do país. Em geral, a neurociência é recente nestes países; por exemplo, a Sociedade Chinesa de Neurociência foi fundada só em 1995. Em comparação, o Brasil tem um histórico extenso com origem no Instituto Oswaldo Cruz e especialmente com o trabalho do Miguel Ozório de Almeida a partir dos anos 1940, e hoje conta com muitos pesquisadores de renome internacional. Com a disponibilidade de recursos de investimento, técnicas e tecnologias, pesquisadores na área para compor uma base docente especializada, combinada com a grande concentração de laboratórios clínicos, hospitais, universidades, instituições e indústrias na área metropolitana paulistana, maior centro populacional da América do Sul, a graduação em neurociência não só torna-se possível, mas necessária.
O curso de Bacharelado em Neurociência nasceu a partir de iniciativas do Centro de Matemática, Computação e Cognição (CMCC) e do Núcleo de Cognição e Sistemas Complexos (NCSC) da Universidade Federal do ABC (UFABC), com apoio da Reitoria e da Pró-Reitoria de Graduação. A proposta parte de uma visão contemporânea, concebendo a Neurociência como uma área composta por atuação em múltiplas linhas, desde a pesquisa básica, passando pela pesquisa aplicada até o desenvolvimento tecnológico. Além de preparar alunos para um leque de programas de pós-graduação, o futuro bacharel em neurociência será um profissional procurado por indústrias farmacêuticas, empresas de desenvolvimento tecnológico, hospitais e editoras. Este mercado potencial tende a se expandir na medida em que o Brasil se desenvolve economicamente e tecnologicamente.
Relação com outros cursos de graduação no Brasil
A formação de um bacharel em neurociência exige uma estrutura curricular altamente multi- e interdisciplinar por natureza. Não é uma coincidência, portanto, que este curso nasça na Universidade Federal do ABC, onde a interdisciplinaridade é um ingrediente essencial no projeto pedagógico no curso do Bacharelado em Ciência e Tecnologia (BC&T), a base de ensino do projeto atual. Entretanto, é importante salientar que este curso não é por inteiro experimental e inovador em relação ao Brasil. Algumas faculdades públicas já oferecem cursos de bacharelado interdisciplinares em áreas relacionadas ou com a mesma filosofia de ensino, seja sem o enfoque em neurociência. Por exemplo, a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) oferece um curso de graduação em Ciências Biomédicas, modalidade Medicina (ou Biomedicina). Este curso é muito mais orientado à área biológica do que o curso aqui proposto, mas também exige um intenso estágio em laboratórios. Um outro curso é o Ciências Moleculares oferecido pela Universidade de São Paulo (USP). Este emergiu das necessidades da comunidade científica e da sociedade de uma abordagem mais integrada a certos desafios contemporâneos. A matriz curricular de Ciências Moleculares é composta de disciplinas nas áreas da matemática, física, química, biologia e computação. Com o conjunto de ferramentas fornecido pela convergência destas diversas áreas disciplinares, o aluno pode inserir-se em vários campos da ciência básica. Também no currículo desta graduação, a realização de um estágio de pesquisa desempenha um papel importante na formação do aluno. O mencionado curso em Ciências Biológicas com ênfase em Neurociências, no UFF, se assemelha à proposta aqui exposta no que se trata das disciplinas com orientação biológica, mas não inclui disciplinas que introduzem o aluno à cognição ou outras funções do sistema nervoso ou a métodos comportamentais e computacionais para o estudo do cérebro.
Resumindo, a relevância da neurociência cotidiana em vários setores da pesquisa básica, da pesquisa clínica, da pesquisa aplicada e da sociedade contrasta com a ausência de cursos de formação com perfil de graduação nesta área no Brasil. Propomos aqui o projeto pedagógico de um curso de Bacharelado em Neurociência, que será uma formação científica e crítica, fortemente interdisciplinar, com atenção para desenvolvimentos recentes na ciência básica como também na aplicação responsável deste conhecimento.
Texto extraído do Projeto de Bacharelado em Neurociência da UFABC
http://neuro.ufabc.edu.br/

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