“Se o instante é tudo o que há e ele é
inapreensível, é preciso, pelo menos, tentar comunicá-lo.”
Richard
Shepard
A literatura e as artes visuais, principalmente a
fotografia, possuem a tecnologia necessária para colocar em prática um desejo
que sempre esteve na mente das pessoas: o de fixar momentos da existência –
sejam eles de quaisquer natureza sentimental ou psicológica. Para o escritor
Mário Quintana, “o fotógrafo tem a mesma função do poeta: eternizar o momento
que passa”.
A investigação pelo registro do instante, observada
como um dos centrais anseios da arte impressionista, fez com que o pintor
francês Auguste Renoir dissesse que “o papel desse tipo de pintura é igual ao
do andarilho casual, que, enquanto passa, capta com o olhar este ou aquele
fragmento de vida”.
Por Andressa Monteiro
Por Andressa Monteiro
Capturar ou descrever vivências parece ser um dos
maiores desafios dentro da comunicação humana. E, no mundo da cultura e das
artes, essa intenção pode ser observada por meio da literatura e da fotografia.
A produção de uma imagem fotográfica é um ótimo
exemplo de descobertas novas e múltiplas: ela não apenas é responsável por
registrar e catalogar um momento, mas por mostrar diversas nuances, ângulos,
perspectivas e formas de criação por meio dos olhos do fotógrafo e de como ele
optou por editar e manipular o produto de sua imagem final.
A descrição de uma cena, em seus mínimos e reais
detalhes, caso a imagem não tenha sido alterada, pode ser facilmente
visualizada por uma fotografia. A descrição visual é considerada plena, se as
condições da imagem estiverem nítidas e claras sobre o momento retratado.
O texto Literatura e
fotografia: o anseio pela apreensão do instante, dos autores Pedro Carlos
Louzada Fonseca e Fábio D’Abadia de Sousa Assim, propõe que a literatura,
especialmente no campo poético, e a imagem fotográfica possuem a função de
ampararem e complementarem uma a outra na hora de contar uma história, e,
consequentemente, de registrar um momento – que, de acordo com a escritora
Clarice Lispector, pode ser definido como o “instante-já”.
Esse “instante-já” é uma fração de segundos em que
a vida se manifesta, mas que é impossível ou improvável de ser apreendida. Ela
pode ser entendida e absorvida em um piscar de olhos e de maneira intensa e
veloz:
Fotografo
cada instante. Aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a
sua sombra [...] O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Capta
essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou à tona de brilhante
escuridão. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemático vai
se desenrolando sem plano mas geométrico como as figuras sucessivas num
caleidoscópio [...]. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se
olha. (LISPECTOR,1980, p.9).
O que se pode deduzir desse pensamento é que a
fração de tempo e de espaço, que ela chama de “instante-já”, tenta, de qualquer
forma, apreender, conseguindo ou não capturar a beleza ou sentido de um período
passado. Se na literatura, tal fenômeno pode ser mais difícil de ser
conquistado, por meio de uma leitura não rápida e pouco descritiva de fatos e
imagens, a fotografia não teria mais sucesso na tentativa de capturar esse
desejo do “instante-já”?
Se a ilusão da captura é feita por um clique, que
pode ter êxito ou não na tentativa do registro, o resultado pode ser
considerado algo unânime, extraordinário e único. Ao relacionar a imagem com a
palavra, utilizamos recursos vários para a expressão da complexidade dos sentimentos
envolvidos em um dado momento.
Uma cápsula do tempo se divide entre expressões da
palavra escrita e da imagem. A pergunta a ser feita seria: “O que fotografei é
passível de ser fraseado em palavras?”, ou “O que descrevi nessas páginas faz
jus a uma imagem fotográfica?”.
Decorre daí, talvez, um dos principais motivos do
fascínio exercido pela fotografia. No entanto, se o tempo se converte numa
série de instantes fragmentados, nem sempre dará conta, por sua rapidez, de
tentar fisgá-lo, de explicar com uma grande riqueza de detalhes uma imagem.
Mesmo que pudesse, ainda sim, seria preciso uma nova linguagem para exprimir
sentimentos e palavras que a fotografia nem sempre pode oferecer e exibir.
A linguagem, para expressar essa instantaneidade,
pode vir também do silêncio e do momento da espera – mesmo que ela nunca venha
e gere frustrações constantes ao fotógrafo. Porém, o assunto tratado não é o
momento prévio do instante, mas sim no tempo em que ele ocorre.
Se, na literatura, as palavras convertem-se em imagens,
na fotografia são as imagens que geram as palavras. Cada um mirará de maneira
singular a realidade, de acordo com as características de cada indivíduo e
objeto retratado.
A compreensão acerca das relações entre literatura
e fotografia passa, em parte, pela discussão sobre a presença e a representação
da realidade na obra de arte. Segundo o autor alemão Erich Auerbach:
a
mimesis, ou seja, a tentativa de representação dessa realidade passa a buscar o
essencial das coisas mediante uma narrativa que tenta apanhar um instante
qualquer da vida de uma personagem ou instantes distintos de diferentes
personagens.
Um trecho do poema As coisas,
do escritor argentino Jorge Luis Borges, ilustra o conceito de tempo passado e
de uma descrição escrita dos objetos quase que de maneira fotográfica:
(...)
O rubro espelho ocidental em que arde
uma
ilusória aurora.
Quantas
coisas, limas, umbrais, atlas em taças,
Cravos,
nos servem como tácitos escravos,
cegas
e estranhamente sigilosas!
Durarão
muito além de nosso olvido:
E
nunca saberão que havemos ido.
A poesia permite, quem sabe com mais êxito, exibir
um gênero formal de escrita mais fragmentária sobre as buscas em torno dos
atributos do instante, se comparada a outras vertentes literárias.
Se é em uma fração de instantes que a realidade é
buscada pela literatura, a sua aproximação com a fotografia, segundo observa o
fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson, consegue “comunicar um sujeito em toda
a sua intensidade”. Para o artista, “a fotografia é uma ação imediata, e o
desenho um ato de meditação.”
Título: Palermo, Italy, 1971, por
Henri Cartier-Bresson
A cena fotográfica é mais uma forma de
teatralidade, de posturas pré-pensadas e da construção de imagens e aparências.
Mas isso não a afasta da poesia. Pelas palavras do autor mexicano Octavio Paz,
“a poesia é algo que entra pelos olhos e não pelos ouvidos”.
A poesia e a fotografia mostram
universos íntimos e exteriores – objetivos e subjetivos, uma existência mística
e intelectual originária de fotografias e capacidade poéticas presentes e
pulsantes. A incessante procura do homem por aproveitar bons momentos e
vivê-los em sua plenitude, pode ser vista no poema Instantes, da
autora americana Nadine Stair.
Se
eu pudesse viver novamente a minha vida, na próxima, trataria de cometer mais
erros.
Não
tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria
mais tolo ainda do que tenho sido.
Na
verdade, bem poucas coisas levaria a sério.
Seria
menos higiênico, correria mais riscos, viajaria mais,
contemplaria
mais entardeceres, subiria mais montanhas,
nadaria
em mais rios.
Iria
a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria
mais problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu
fui uma dessas pessoas que viveram sensata e
Produtivamente
cada minuto da sua vida; claro que tive
momentos
de alegria. Mas, se pudesse voltar a viver, trataria
de
ter somente bons momentos. Porque se não sabem, disso
é
feito a vida, só de momentos.
Não
percam o agora. Se eu pudesse voltar a viver,
começaria
a andar descalço no começo da primavera e
continuaria
assim até o fim do outono.
Daria
mais voltas na minha rua, contemplaria mais
amanheceres
e brincaria com mais crianças, se tivesse outra
vez
uma vida pela frente. Mas, como sabem, tenho 85 anos
e
sei que estou morrendo.
Esse realismo resulta da entrega total da poeta à
realidade, como uma antena ultrarreceptora, que está apta e disponível a
vivenciar, descobrir e aprender tudo o que lhe é mostrada.
Para a escritora americana Susan Sontag,
O
compromisso da poesia com o concreto e com a autonomia da linguagem do poema
corresponde ao compromisso da fotografia com a visão pura. Ambos supõem
descontinuidade, formas desarticuladas e unidade compensatória: arrancar as
coisas de seu contexto (vê-las de um modo renovado), associar as coisas de modo
elíptico, de acordo com as imperiosas mas não raro arbitrárias exigências da
subjetividade.
Tal capacidade mostra que a poesia e a fotografia
têm uma visão renovada acerca das coisas. Literatura e fotografia, duas formas
de arte aparentemente tão diferentes, são semelhantes em sua essência e
manifestação na busca da apreensão e do registro do tempo.
A função da ilustração para comunicar o tempo, o
desígnio e a intenção do texto escrito
Na ilustração de jornais, revistas e periódicos
mensais e semanais, existe uma mensagem, normalmente retirada de um conteúdo
humorístico, critico ou político, que precisa ser comunicada perante o texto
escrito ou a estrutura do próprio desenho.
Publicações internacionais
importantes, incluindo as revistas americanas The Paris Review,Vanity
Fair, Life e, especialmente, a The New Yorker,
apontam que texto e ilustração podem ser essencialmente complementares, como
afirma o artigo The End of Illustration, de Steve Heller:
(...) Their graphic
commentaries on a broad range of social and cultural issues energized the
covers and pages of, respectively, The New Yorker,Life and The
New Republic, proving that illustration could influence opinion as well as
illuminate tex.
Cartoon da revista americana The New
Yorker.
A relevância da ilustração nos livros exibe
distinções entre uma obra ilustrada: na primeira, a imagem é definida apenas
como apoio, revigorando o que o texto já diz. No livro ilustrado, a palavra
escrita é prescendida ou se torna atuante juntamente com a ilustração.
As ilustrações, nesse contexto, tornam-se
reconhecidas como literatura. O ilustrador não cria apenas figuras de uma
história para o escritor, mas adquire o mesmo poder no processo de criação de
uma obra.
O texto O poder da imagem,
publicado no site da Revista Educação, enfatiza a importância da aprendizagem
na “leitura de imagens”:
Engana-se
quem acredita que a leitura de imagens seja puramente instintiva ou fácil;
compreender uma narrativa visual pressupõe uma alfabetização do olhar.
Aprende-se a ler, mas também a ver - e o papel do educador é, também, mostrar como
decifrar os códigos visuais, muitas vezes extremamente sofisticados. (...) Ao
mesmo tempo que pressupõe um aprendizado de leitura, o livro ilustrado traz
também uma possibilidade de refinamento da percepção artístico.
As ideias do texto Algumas
considerações sobre a Ilustração na Literatura Infantil e Juvenil,
do autor e ilustrador Anielizabeth, debatem metáforas, comparações, sínteses,
mensagens subliminares, códigos de comportamento ou regionalismos de um texto
ou ilustração e da necessidade do ilustrador de fazer com que o leitor entenda
o seu trabalho.
A primeira indagação que surge a partir da
informação citada acima é: será que o ilustrador/cartunista é tradutor do seu
próprio texto? Seria uma pleonasmo reapresentar uma ideia ou argumento já existente
no texto por meio de uma imagem? A ilustração de um livro infantil, por
exemplo, não traria agudezas, proeminências e detalhes artísticos que
precisariam estar presentes na obra para sua melhor compreensão e imaginação?
A avaliação de que as imagens estão substituindo as
palavras para as atuais gerações, de que hoje é muito mais fácil ver o mundo de
imagens do que se aventurar a ler as palavras, está presente em nossa
sociedade. A leitura, então, seria algo mais específico, que ultrapassaria a
barreira do visual e se tornaria algo secundário e subjetivo.
Há um hábito de responsabilizar a imagem, ou de
culpá-la, por entender que ela pode estabelecer uma relação pobre ou estreita,
que tiraria a importância do texto escrito em uma obra literária, desestimulando
o desapego à leitura ou “mimando” o leitor a apenas procurar significado em
desenhos ou fotografias em um livro infantil, por exemplo.
O escritor argentino Alberto Manguel explica essa
problemática pelo ponto de vista educacional-familiar:
As
pessoas falam todo tempo [sic] que as crianças e os jovens não leem. Não é um
problema isolado, mas consequência [sic]. Instruem a não nos ocuparmos de
coisas que tomam tempo, que são profundas, lentas ou difíceis.
Afinal, dizem, é muito mais fácil olhar para imagens
rápidas e facilmente decodificáveis do que se deter em uma leitura que irá
tomar, no mínimo, tempo. A famosa frase “Uma imagem vale mais do que mil
palavras”, cabe nesse contexto.
Pode haver a existência da produção de imagens para
o consumo de um produto, e outras, para o prazer e complementação literárias.
Para o escritor e ilustrador Ricardo Azevedo,
O
texto escrito e as imagens constituem códigos diferentes dotados de recursos
peculiares e por vezes incompatíveis. Textos literários tendem a ser plurissignificativos
e possibilitar diferentes leituras, o que, em princípio, desqualifica premissas
como “mensagem” e “chave única de leitura”, ou seja, não combinam com a idéia
[sic] de univocidade.
A ilustração e a literatura apraziam, enternecem,
ensinam e incitam a imaginação cada vez em que há um diálogo entre métodos que
envolvam a didática de uma informação, a arte imagética e a processos
descritivos de cenas e acontecimentos da narrativa pela ilustração.
Aqui, é preciso deixar claro que não é criada uma
cópia desenhada do que já está escrito, gerando redundâncias na obra, mas
possibilitar o entendimento e a sensibilidade que vai além do que já está
composto pelas palavras, trabalhando de diversas maneiras com a intuição
criadora e fantasiosa do leitor.
O processo de pesquisa é essencial na fase de
produção de uma ilustração e texto. Isso porque além das imagens que farão
parte do produto final, gravadas no arquivo mental dos leitores e de seus
criadores, há outras criadas por meio de um longo e detalhado processo de
construção consciente com relação a um público-alvo específico, assim como a
história e origem, época, tendências, cores e intenções de cada narrativa.
O ilustrador acaba por zelar pelas qualidades
estéticas, funcionais e imaginativas,que fazem parte da criação literária e
ilustrativa. O livro ilustrado seria mais uma forma de documentar uma memória
iconográfica de uma geração, período ou contexto, imortalizando a literatura,
sem banalizar, ou por assim dizer, “facilitar” o entendimento e uso das
imagens? Com essa junção de linguagens, o leitor treina seu olhar e mente para
entender e identificar com maior agilidade e naturalidade códigos verbais,
signos linguísticos, decodificando a pluralidade desses vocabulários.
Desde os prelúdios da escrita, texto e imagem
convivem em harmonia e triunfo. O ilustrador e o fotógrafo contrapõem a palavra
escrita, enquanto o escritor a cria. O desenho e a fotografia narram e
descrevem uma história de forma tão satisfatória e rica quanto um texto,
criando obras ilustradas e de arte multidimensionais. O texto ilustrado não é
nem a palavra, nem a imagem, mas sim a junção de ambos.
REFERÊNCIAS
ANIELIZABETH. Algumas considerações
sobre a Ilustração na Literatura Infantil e Juvenil.Portal do Ilustrador,
São Paulo, fev. 2011. Disponível em:http://portaldoilustrador.blogspot.com.br/2011/02/algumas-consideracoes-sobre-ilustracao.html.
Acesso em: 1 nov.2014.
AGUIAR, Laura,. O poder das imagens.
Revista Educação, São Paulo, ago. 2011. Disponível em:
<http://revistaeducacao.uol.com.br/textos/170/o-poder-das-imagens-234958-1.asp>. Acesso em: 1 nov. 2014.
Borges, Jorge Luís. As Coisas.
Tradução de Ferreira Gullar. Overmundo, Rio de Janeiro, RJ.
Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/perfis/cep-1>. Acesso em 30 out. 2014.
HELLER,
Steve. The End of Illustration? Illustrator’s
Partnership. Disponível em: <http://www.illustratorspartnership.org/01_topics/article.php?searchterm=00073>. Acesso em: 1 nov. 2014.
Fanpop. Disponível em: <http://www.fanpop.com/clubs/fine-art/images/692309/title/renoir-wallpaper>. Acesso em: 1 nov. 2014
FONSECA, Pedro Carlos Louzada; SOUSA,
Fábio D’Abadia. Literatura e fotografia: o anseio pela apreensão do instante.
Julho, 2008. Disponível em: <http://www.newyorker.com/cartoons/bob-mankoff/cartoons-can>. Acesso em: 1 nov. 2014.
Pinterest. Disponível em: <http://www.pinterest.com/pin/522276888008197570/>. Acesso em: 1 nov. 2014.
STAIR, Nadine. Instantes. Releituras.
Disponível em: <http://www.releituras.com/egomes_borges.asp>. Acesso em: 2 nov.2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui o seu comentário.